Corpo e Despossessão: A Pedagogia do Medo em Hollywood

Por Anielson Ribeiro

Como visto, a produção da consciência da mulher é extremamente precária, uma vez que a percepção alienada do seu corpo impede que o reconheça como constitutivo de sua própria formação ontológica, por decorrência de um longo processo histórico de disciplina e de dispositivos sociais de despossessão. Isso acarretará diversas problemáticas, proibições e riscos em relação ao livre exercício de suas funções corporais. Despossessão aqui sugere um sinônimo para o conceito hegeliano de negação. Vale ressaltar que negar não é anular o Outro, e sim subjugá-lo.


A introdução como ruína

Introduzir um tema é, antes de tudo, saber ouvir os mortos, é sentir o atravessamento das vozes que emudeceram antes de nós e, acima de tudo, reconhecer que alguns ecos restam abafados – suspensos no tempo. As linhas de força do automovimento dialético vão constituindo-se a partir das fissuras dessa historiografia. Requerer para si esses resíduos não é meramente uma forma de cooptar as energias negociáveis para as modificações, mas incorporar a autodestruição da fixidez relegada pelo subproduto do ser ao não-ser. 

O modo pelo qual as formas de não-existência se alimentam da existência já se conduzia na intensa potencialidade narrativa para construção coletiva do imaginário do homem. A maioria das lendas, estórias e epopeias nasceu da fria carne de fatos deteriorados, e eram repassadas oralmente pelos anciãos das comunidades pré-literárias para os demais membros. Elas eram indistintamente dirigidas a qualquer faixa etária, até porque a diferenciação entre crianças e adultos não existia. Somente a partir do século XV é que a noção de infância começou a se delinear [1]

A fase superior dessas narrativas orais se realizou na forma dos contos de fada (ou contos maravilhosos), que eram difundidos pelos camponeses pobres para os jovens, não só para dissipar o tédio dos trabalhos domésticos, mas também tendo em vista uma edificação moral e uma disciplina de advertência [2]. As histórias, por vezes, eram contadas sem despudor quanto às cenas de extrema violência e de sexo, além de absoluta indiferença ao linguajar obsceno. Através do que se pode chamar de “pedagogia do medo”, essa brutalidade explícita visava alertar os mais jovens dos perigos que o mundo reservava, com seus lobos maus que seduziam e machucavam mocinhas traquinas. Algo que foi apropriado e transposto para um âmbito escrito e propriamente literário, em 1697, no famoso Contos da mamãe ganso, por Charles Perrault (1628-1703), combinando a elegância das elites, pedagogia do medo e tratado de civilidade francesa, como nos é mostrado na moral de cada estória, a exemplo do conto da Chapeuzinho Vermelho:

Aqui se vê que os inocentes,/Sobretudo se são mocinhas/Bonitas, atraentes, meiguinhas,/Fazem mal em ouvir todo tipo de gente./E não é coisa tão estranha/Que o lobo coma as que ele apanha./Digo o lobo porque nem todos/São da mesma variedade;/Há uns de grande urbanidade,/Sem grita ou raiva, e de bons modos,/Que, complacentes e domados,/Seguem as jovens senhorinhas/Até nas suas casas e até nas ruinhas;/Mas todos sabem que esses lobos tão bondosos/De todos eles são os mais perigosos [3]. 

No prefácio dos Contos da Mamãe Ganso, Perrault deixa claro as intenções de suas historietas: apontar para uma moralidade instrutiva, mostrando que a virtude é sempre recompensada e o vício é sempre punido. Nessa versão do conto, p. ex., o final se resume na desobediente Chapeuzinho Vermelho sendo devorada pelo Lobo Mau, sem caçador para salvá-la, diferentemente da canônica versão dos irmãos Grimm, que busca edificar com uma maior polidez. Daí por diante, as narrativas foram seguindo cada vez mais por um caminho de alegria e regozijo infantil, tendo uma ou outra adversidade, mas com a eterna promessa de um final feliz. Já em 1937, a Walt Disney lança a animação Branca de Neve e os Sete Anões, uma adaptação do conto dos Grimm com uma atmosfera mágica agradável, retirando completamente os elementos de pesadelo dos contos camponeses [4]. É interessante notar que, na mesma época, os estúdios da Universal Pictures investiam nas adaptações da literatura de horror (Frankenstein, Drácula, O Homem Invisível, O Fantasma da Ópera etc.). Não demorou muito para os resíduos desses subgêneros convergirem no paradigmático O Exorcista (1973).

Como veremos adiante, o terror inaugurado com o filme de William Friedkin reúne a pureza dos personagens protagonistas da Disney, a atmosfera onírica dos filmes de horror, a pedagogia do medo dos primeiros contos de fada e o imaginário medieval do demônio e da caça às bruxas. Assim, este artigo foca sua análise na forma como o corpo feminino e suas manifestações são representados e despossuídos pela dominação masculina. Como não se trata de uma explicação cientificista, senão de um estudo dialético, é preciso aceitar a linguagem do cinema, com seus corpos flutuantes, suas deformações instantâneas e espíritos demoníacos, entendendo-os como signos de uma forma de narrativa disciplinar, para finalmente confrontá-la internamente.

Para constituir o corpus deste artigo, serão analisados alguns dos principais filmes de terror com temática de exorcismo, a saber, O Exorcista (1973), O exorcismo de Emily Rose (2005), O último exorcismo (2010) e o recente e bem-sucedido Invocação do Mal (2013). Todos esses filmes, de alguma forma, encarnam os processos ideológicos que legislam sobre os corpos as normas de seu funcionamento no capitalismo tardio. 

Das coisas que se escondem no porão

É extremamente sintomático que os filmes analisados tenham sempre as mulheres como os personagens que serão receptáculos da possessão demoníaca. Sejam elas cristãs fervorosas (Emily Rose e Nell) ou ateias (Regan e Carolyn), o demônio é indiferente às suas cosmogonias, ele é um intruso, um alienígena que opera invadindo os seus corpos, diferentemente do que acontece no filme A possessão do mal [5], um raro caso em que o personagem possuído é um homem. Entretanto, nessa situação, Michael King convida o demônio a entrar em seu corpo, i. e., o homem tem total controle sobre seu corpo e só perde isso mediante sua própria autorização, enquanto a mulher aparece como se tal autonomia estivesse revogada desde sempre. Essa desautoridade resulta na reificação corporal da mulher.

Como nos lembra Simone de Beauvoir: ninguém nasce mulher, torna-se mulher [6]. E essa configuração, argumenta a filósofa existencialista, se materializa no modo como os mecanismos civilizatórios concebem a relação com o corpo. É isso que produz as condições subjetivas para constituição do ser, e é exatamente por isso que a subjetividade feminina é entendida de forma tão precária. Diante do desenvolvimento histórico da civilização, principalmente a partir do surgimento da propriedade privada e da necessidade de sua perpetuação através das heranças, o homem se impôs como o sujeito que determina a posição de objeto da mulher. Ambos os papéis sociais se compreendem subjetivamente através de seus corpos, mas o corpo feminino é decomposto, em diversos níveis de violência material e simbólica, até ser submetido aos ditames da dominação masculina e apartado da sua transcendência egóica, mantendo-se marcadamente como objeto. 

Nesse sentido, a personagem feminina é mantida, nas representações cinematográficas, em sua situação de opressão social na medida em que se efetiva como não-personagem, como o Outro, como objeto de uma ação intrusiva. Haja vista que não passa de um invólucro que abriga a verdadeira personalidade diabólica. Assim, a consciência da mulher possuída conhece somente essa deterioração subjetiva. 

As narrativas de horror sempre permitem que o espectador sinta certa ansiedade através de uma aura de desconfiança em torno da mulher: qualquer atividade fora da ordem, um mal-estar ou comportamento irritadiço, isto é, qualquer perturbação que interfira no sorriso leve, na docilidade infantil ou no ânimo materno é o prenúncio de que, a qualquer momento, o demônio irá emergir. O interessante é que somente no instante em que a mulher encarna o Diabo no corpo é que ela pode ser reconhecida como sujeito, como personagem em si. Isso ocorre simplesmente porque o demônio é uma entidade masculinizada no imaginário coletivo. 

É desta forma que devemos encarar a cena em que a pequena Regan MacNeil gira a cabeça em 180º e fala com uma voz de um homem de 40 anos, pois o que isso realmente representa é uma inversão subjetiva no procedimento da verdade. Esse é, inclusive, o evento que faz a mãe recorrer ao padre Karras. Não se trata meramente de uma descrente passar a crer que sua filha está possuída pelo demônio, talvez seja exatamente o oposto: Chris MacNeil procura o padre exorcista porque o abismo a olha de volta, porque finalmente se depara com o eco dos desejos da filha na voz diabólica, porque reconhece a possibilidade da autonomia de seus impulsos libidinais. 

Em outro filme, há uma cena em que a mãe de Emily Rose, numa conversa informal com a advogada de defesa, diz que a “sua” Emily era muito mais feliz antes de entrar para a faculdade, o que parece apontar para a ideia de que, antes dos ambientes universitários e do conhecimento “afastá-la de Deus”, o demônio não fazia parte da vida de Emily. Em ambos os casos, afirmar o demônio é uma forma de negar a filha. 

Regan e Emily possuídas representam claramente o que Sigmund Freud denomina de O Inquietante (Das Unheimliche) [7], não tanto pela aparência horripilante, e sim pela presença fantasmagórica de um Ser que não poderia ser em plenitude, mas apenas em certo nível de desbotamento ontológico. Basicamente, a possessão encarna aquilo que deveria manter-se na ordem do reprimido e volta à tona. Esse objeto infamiliar é já conhecido, e assombra assim mesmo (ou por isso mesmo) a mãe castradora.

O útero é do tamanho de uma fábrica

Como visto, a produção da consciência da mulher é extremamente precária, uma vez que a percepção alienada do seu corpo impede que o reconheça como constitutivo de sua própria formação ontológica, por decorrência de um longo processo histórico de disciplina e de dispositivos sociais de despossessão. Isso acarretará diversas problemáticas, proibições e riscos em relação ao livre exercício de suas funções corporais. Despossessão aqui sugere um sinônimo para o conceito hegeliano de negação. Vale ressaltar que negar não é anular o Outro, e sim subjugá-lo. A existência da mulher continua inteiramente necessária aos interesses da dominação masculina, bem como o proletário é imprescindível para o burguês, o que não é permitido para ambos é que se compreendam como sujeitos, como agentes históricos, ficando reservados à categoria de ente, de coisa, à passividade da pedra. O Outro é sempre objeto, e o objeto é sempre propriedade do Sujeito.

Há uma instância no corpo feminino que foi afetada mais que qualquer outra pela dominação masculina: o útero. A função reprodutiva é o que escancara mais nitidamente certa gramática da violência contra o feminino, já que a decisão de ser ou não ser mãe é sempre uma questão legislativa de Estado, não uma decisão autônoma da própria mulher. Mesmo com todos os tímidos avanços da posição da mulher na sociedade civil, ainda há uma vigilância espectral flutuando sobre seus corpos.

Por exemplo, quando o debate acerca da legalização ou mesmo da descriminalização do aborto vem a público, eclode também um enorme engodo moralista, seja em países centrais ou naqueles da periferia do capitalismo. É que mesmo as sociedades capitalistas mais avançadas em termos de produção e tecnologia precisam de serviçais e consumidores, e de corpos que os gerem.

Segundo Silvia Federici [8], a história nem sempre foi essa. Houve uma época até a Alta Idade Média que a Igreja concedia certa condescendência em relação a mulheres pobres que abortavam. Foi principalmente após a Peste Negra, evento que coincide ao período de acumulação primitiva do capitalismo, que a criminalização das práticas contraceptivas se estendeu a todo corpo feminino. Isso ocorre devido a duas oposições solicitantes: 1/3 da população europeia foi dizimada pela peste, ao mesmo tempo que a contrarrevolução capitalista necessitava de mão-de-obra para consolidação de sua hegemonia como modelo de produção. O útero então se torna território econômico, pois produzia proletários emergentes, a classe de despossuídos cuja única atribuição, seus corpos, precisava ser vendida para autoconservação. Nesse sentido, a função biológica reprodutiva se torna também função produtiva, já que a força de trabalho é também uma mercadoria. 

O despontamento do regime capitalista exigia não só a expropriação das terras comunais e a ofensiva do assalariamento laboral, que alienava os camponeses e artesãos do contato com seus produtos e meios de produção; era também necessário que se inaugurasse uma espécie de cercamento dos corpos travestido de disciplina. Foi a partir daí que se realizou a caça às bruxas. 

As câmaras de tortura, os enforcamentos e linchamentos públicos e as condenações à fogueira nos mostram que a pedagogia do medo é essencialmente ideológica, pois tem tanto um suporte discursivo quanto um material. Não era apenas uma questão de fazer tais atos violentos, mas também de expor publicamente para criar um ambiente de terror, uma doutrina de choque que conseguisse lidar com a resistência.

O que quer dizer que os caçadores de bruxas estavam menos interessados no castigo de qualquer transgressão específica do que na eliminação de formas generalizadas de comportamento feminino – que já não toleravam e que tinham que se tornar abomináveis aos olhos da população [9]. 

Interessante notar como esse episódio histórico está diretamente ou indiretamente marcado nas narrativas de terror numa estruturação traumática. Em O exorcismo de Emily Rose, p. ex., o cheiro de algo queimando que curiosamente só é sentido por duas mulheres, Emily e a advogada Erin Bruner, e pelo padre Richard Moore evoca essa cumplicidade partilhada sobre os estilhaços trans-históricos desse evento. Mas a simbologia que abrange todos os filmes de possessão é a mulher enquanto a forma em que o conteúdo demoníaco se entrincheira. 

Tomemos agora o filme Invocação do Mal. Toda sua topologia narrativa é disposta sob uma tessitura temporal de caráter messiânico, a saber, a presença diabólica que oprime a família Perron, o espírito de Bathsheba, é descendente de uma bruxa enforcada nos eventos tardios de Salem [10]. Notavelmente, isso irá despontar na problemática que reveste todo o longa-metragem: a questão da maternidade.

Além de se fixar no centro do enredo, a maternidade se irradia para as regiões periféricas do filme: aqueles diálogos que, de tão saturados de emoção, se tornam pontos cegos. Assim, a mãe, Carolyn, é sobrecarregada com as observações da protagonista Lorraine Warren sobre como “crianças são uma benção” ou “as bruxas usam a dádiva que Deus lhe deu para ofendê-Lo”. Por isso, após ser possuída pelo espírito da bruxa, a tentativa de Carolyn assassinar sua filha mais nova tem um significado mais complexo. Se pararmos para observar, o ato do infanticídio é basicamente uma versão perversa do aborto, um aborto pós-natal. Obviamente, a indústria cultural não perderia tempo com admoestações acerca do infanticídio – prática que já se tornou inquestionavelmente repulsiva; sua função, nesse caso, é intervir narrativamente em um processo em disputa. Ou seja, o que o filme articula ideologicamente é que o aborto é tão ruim quanto o infanticídio, corroborando com aqueles que acreditam que o feto é uma vida. Isso exprime como a pedagogia do medo infesta a consciência coletiva por meio dos aparelhos ideológicos do capitalismo avançado. Talvez sermões em capelas já não produzam mais o mesmo efeito que há quinhentos anos, mas o alcance do cinema na atual era da reprodução técnica pode substituí-los muito bem.

As mãos ensinam a desaprender

O medo como pedagogia sentencia nossas energias a esse vácuo libidinal. Não é que a sexualidade seja anulada, muito pelo contrário. A longa história de disciplinamento repressivo sexual é correspondente direta do hedonismo contemporâneo. A instauração da lei convida nossas pulsões libidinais a infringi-la. O uso da proibição desenvolve, através da nossa economia libidinal, um subproduto fetichizado e autônomo que, longe de subverter a ordem, se incorpora a esta. Afinal, a antissexualização é o outro lado da hipersexualização, existe uma dialética de forças solicitantes e solicitadas em jogo. 

No entanto, é preciso localizar a situação da mulher nessa dinâmica de transgressão. Como alerta Federici, foram nos anos de maior repressão sexual da mulher e de imposição de sua castidade que as autoridades francesas descriminalizaram o estupro de camponesas pobres. Há um índice de similitudes nos dias atuais com essas práticas, i. e., uma continuidade histórica. Nesse sentido, a conservação dialética incorpora os elementos da ideologia religiosa nas relações societárias, mesmo em ambientes supostamente laicizados e seculares. A forma como apontam para a relação entre comportamentos femininos adequados e inadequados como justificativa em casos de abusos e violência sexual só atesta essa conservação dialética, posto que

a necessidade de manter as mulheres veladas implica um universo extremamente sexualizado, em que o próprio encontro com uma mulher é considerado uma provocação a que nenhum homem é capaz de resistir. A repressão tem de ser intensa, porque o sexo em si é extremamente forte [11].

Toda a atmosfera dos filmes de possessão está permeada por essa presença espectral da castidade feminina. Mas, das escolhas que compõem o corpus deste artigo, o longa que melhor articula a narrativa da pureza corrompida pelo demônio é O último exorcismo. Assim que o espectador se depara com a jovem protagonista Nell e com seu pai privativo, nota-se que há a constituição de um ambiente claustrofóbico e repressivo sexualmente. Logo, qualquer sacudida nessa organização casta é redutível a uma situação de advento demoníaco. Não obstante, a personagem se apresenta inicialmente como mais um caso de histeria que seria desmentido pelo cético pastor Cotton, até o momento em que aparece no hotel onde estavam hospedados os envolvidos no documentário fictício, se insinuando para a câmera e tentando seduzir a produtora. Qualquer dissonância libidinal acaba tombando sobre a feminilidade uma aura de desconfiança. Conforme Mladen Dolar,

a pulsão não é apenas o que preserva uma certa ordem social. Ao mesmo tempo, ela é a razão pela qual tal ordem não pode se estabilizar e fechar-se sobre si mesma, pela qual ela não pode se reduzir ao melhor arranjo entre sujeitos existentes e instituições, mas sempre apresente um excesso que o subverte. (2008 apud SAFATLE, 2018, p. 49) [12].

Na continuação da franquia, a saber, O último exorcismo – parte II, encontra-se uma representação desse excesso pulsional que desordena o mundo. Primeiro, a personagem, num episódio que funde transe onírico e autoerotismo, se vê recordando fragmentos do passado, ao mesmo tempo em que experimenta intensa volúpia e excitação às carícias dedicadas por suas mãos. No entanto, ela sempre recua, por algum tipo de presença estranha de culpa que acompanha seus sonhos. Isso se repete mais uma vez, todavia, ela é interrompida pela figura do rapaz enamorado que rapidamente se transfere à imagem do pai. Para confrontá-lo, Nell fantasia sua nova colega de quarto matando-o. Na cena seguinte, a personagem volta para a cama e a mão, esse objeto autônomo, dança pelo seu corpo até finalmente transformar o desejo em realização do prazer. É como se houvesse um momento de oclusão das restrições do Supereu, representado pela autoridade paterna, e irrompesse uma crise narcísica na garota.

Na verdade, o que nessa cena se concentra tão fortemente é a tensão irregular do Outro gozo, algo que não só não se pode falar como também é impossível falar, pois está fora do jogo simbólico de nomeação. Como afirma Lacan [13], “há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando acontece.” No exemplo do episódio descrito, a garota precisa estar na solidão de um estado letárgico para experimentar o excesso pulsional do gozo feminino, pois este advém de um além desconhecido, lá onde as palavras são insignificantes e a língua é crivada pelo delírio: para alguns o inferno, para outro o sonhar. Por isso, o cinema talvez seja a arte que melhor consegue se aproximar da forma representacional do desconserto desse Outro gozo, precisamente por sua linguagem desconstituir a necessidade da língua.

Mais adiante na película, quando Nell está prestes a morrer, por causa de um novo exorcismo mal sucedido, o demônio se apresenta para a garota, respectivamente, nas figuras do rapaz, do pai e, por fim, de si mesma, ofertando sua mão e a discursar sobre a unidade entre ambos. A única forma de se desvencilhar desse objeto alienígena atormentador, ou seja, o demônio em sua mão, é operar um alto grau de desidentificação sobre o Eu para se tornar o próprio objeto. Evidencia-se, nessa cena, que o demônio, longe de ser representação da instância do Id, como comumente é associado, na verdade, é a passagem da dupla articulação do Supereu: da dimensão proibidora (o pai) ao imperativo de gozo lacaniano (a própria Nell enquanto escolha objetal narcísica). Afinal, “nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo de gozo – Goza!” [14]. E, assim, todo mundo acaba e começa em um espelho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compreendermos que a subjetividade é constituída a partir da relação que se tem com o corpo, pode-se concluir porque a ideologia capitalista brutaliza a representação do feminino através do cinema de terror. Pelo longo processo de censuras e punições, a mulher permanece alienada de sua própria corporeidade. O demônio, esse divino perverso, esse inumano que habita todos os homens, é a própria sexualidade em seu estado de estranhamento. O sexo é uma entidade-Outra. Por isso, no corpo feminino, o estranho em si mesmo é a própria essência forjada pelo tempo e o fogo. 

Há entrelaçado a isso um cinismo antigo dos rituais de exorcismo nos filmes de terror que se manifesta em enunciados aparentemente direcionados ao demônio, quando na verdade seu receptor é a própria subjetividade feminina, como a clássica frase “sai desse corpo que não te pertence” ou “eu o comando”. São fantasmagorias do trauma histórico deixadas pela caça às bruxas, pelos cercamentos e pelo controle reprodutivo. A diferença primordial entre espíritos demoníacos e essas fantasmagorias é que fantasmas são resíduos daquilo que nunca foi embora das nossas relações humanas, como estigmas que nos pertencem e nos despossuem, ao mesmo tempo.


Notas:

[1] ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

[2] DARNTON, R. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Trad. Sonia Coutinho. Rio de janeiro: Graal, 1986.

[3] PERRAULT, C. Contos da Mamãe Ganso ou histórias do tempo antigo. Trad. Leonardo Froés. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

[4] Segundo o historiador francês Robert Darnton (1986), na versão primitiva, o príncipe encantado, que já era casado, estupra a princesa adormecida. Após ter filhos como resultado desse ato de violação, a princesa só desperta quando um dos bebês morde seus seios durante a amamentação.

[5] THE POSSESSION of Michael King. Direção: David Jung. Los Angeles, California: Gold Circle Films, 2014. 1 DVD (83 min.).

[6] BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. v. 2. Trad. Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

[7] FREUD, S. Obras completas: história de uma neurose infantil (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14.

[8] FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

[9] idem, ibidem.

[10] Os acontecimentos de Salem mostram como a pedagogia do medo é eficaz. Os protestantes, essa dissidência da Igreja Católica que sofreu com a tortura e o assassinato promovidos pela Inquisição, agora exerciam as mesmas penas e métodos assombrosos para as mulheres de sua comunidade.

[11] ZIZEK, S. O absoluto frágil. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2015.

[12] SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

[13] LACAN, J. O seminário, livro 20. Mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

[14] idem, ibidem.

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